quinta-feira, 1 de março de 2012

A ARTE DE SER FELIZ,POR CECÍLIA MEIRELES


A arte de ser feliz
Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

domingo, 1 de janeiro de 2012

A Arte de Reinventar a Vida, Por Frei Betto


A ARTE DE REIVENTAR A VIDA.


Frei Betto

Finda o ano, incia-se o novo. No íntimo, o propósito de “daqui para frente, tudo vai ser diferente.”Começar de novo será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”? Atribui-se a Gandhi esta lista dos sete pecados sociais:

1) Prazeres sem escrúpulos;

2) Riqueza sem trabalho;

3) Comércio sem moral;

4) Conhecimento sem sabedoria;

5) Ciência sem humanismo;

6) Política sem idealismo;

7) Religião sem amor.

E agora, josé?

No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas!

Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Alberts, o Einstein e o Scheitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta da fama, riqueza e beleza.

Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um “esplendor”que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários.

A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimento das pessoas moribundas:

1) Gostaria de ter tido coragem de viver uma vida verdadeira para mim, não a que os outros esperavam de mim. No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade. Por que não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.

2) Gostaria de não ter trabalhado tanto. Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo a família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela maior qualidade. E, nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite, somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos o carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.

3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos. Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã... o momento de manifestar o nosso carinho à pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E, para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos o cupim do desencanto nos corrói por dentro.

4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos. Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos,muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassados...

5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz. Ser feliz é questão de escolha. Mas vamos adiando nossas escolhas, como se fôssemos viver 300 ou 500 anos. Ou esperamos que alguém ou determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abracemos algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Nostalgias... (Trecho de carta) Hugo de Carvalho Ramos

Hugo de Carvalho Ramos nasceu em 21 de maio de 1895, em Vila Boa, então Capital do Estado de Goiás. Iniciou seus estudos na cidade natal e depois foi para o Rio de Janeiro, onde, em 1916, matriculou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1917, publicou Tropas e Boiadas,coletânea de contos que até hoje permanece como uma das obras goianas mais festejadas. Em 1920, estando prestes a concluir seu curso jurídico e, em crise de depressão, viaja ao interior de Minas Gerais e São Paulo. Em 31 de março de 1921, quando retorna ao Rio de Janeiro, suicidou-se, enforcando-se com uma corda de rede. Sempre presente na história da literatura pelo seu livro de contos, deixou poesias que mereceram inclusão no livro de Andrade Muricy sobre o Simbolismo.

Biografia: Tropas e boiadas (contos). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917; Obras completas de Hugo de Carvalho Ramos, São Paulo, Panorama, 1950, 2 v.

Já que vais brevemente à chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num
tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o manténs),
próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por mim a última vez que lá estive. Olha, não te
esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e
garranchento; e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a
comprida cana de pesca sobraçada, farnel d'iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto
e em mangas de camisa quase sempre – tal o nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito anos, – a
cantar velhas trovas nativas pelas estradas...
Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos
de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão.
Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só,
quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e
barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso
de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra
banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao
sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de
roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos
pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d'argila vermelha, entranhando-se do outro
lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem
habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os
cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor...
Apressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre
Chegadinho, dos batuques e muxirões da roça, ora aquela dolente melopéia do Baleador, tão
simples e evocadora:
Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira,
A porteira não quebrou!...
Assim alegremente, fazia os dois quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam,
no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.
No Manuel Flor, tapera antiga que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de
que restavam apenas os moirões d'aroeira, carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos
gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo
trilho inculto que levava à pedreira favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas
taquaras apodrentadas adensavam os mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol,
impunha silêncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da
pescaria...
Voltávamos ao sítio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro,
quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada,
mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando às vezes o dedo dolorido duma ferroada de
jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa
cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lobós que lhe seriam como
prêmio adjudicados.
De longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os
primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e assustados dum trambolhão a um
pinote ou volteio mais rápido.

Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde.
Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas dos
jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes.
Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos
moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pêlo
arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho.
Distante, na estrada da Barra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga
de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a
estalar ao longe, e a voz pigarrosa do caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a
incitar aos muxoxos a mulada:
– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!... Penacho!...
E mais além, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se,
moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas e estrídulas as outras, de lado a lado
rememorando a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...
Anoitecia. A paz do sertão, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa
tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacenta d'algodão, alumiada ao centro,
vagamente, pela candeia de três bicos, que se espevitava de vez em vez.
Surgiam o angu de caruru nos tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto,
em travessas e pratos estanhados, rebrilhando à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão
de caninha e o frasco de malagueta para os mais velhos, os que gostassem do condimento
rústico.
Empanturravam-se como pagãos que éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas
colônias...
Que rica bóia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao
tempo que se contava ainda na fieira dos anos onze, doze, treze primaveras apenas!
Não raro, o caseiro do sítio, forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o
braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três léguas derredor – vinha para a soleira da porta,
encapotava-se banzento ao batente, acendia um cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como
capucho d'algodoeiro, punha-se a devanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e
pequenos.
Eram sempre histórias antigas, das passadas eras do Império e presídios do Araguaia.
Ficávamos a escutar, sonhando com essa região longínqua de canguçus e caboclos desnudos,
areias infindáveis alvejando à distância, onde a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do
luar, e de cujo fundo das águas saíam, em estação propícia, as tracajás à desova pelas praias
d'arribação...
E a mente exaltava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e
outros que, mais felizes, tinham visto ou descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a
selvática poesia dos sertões brasílios...
– Ah! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular
do capitão José Manuel, teu pai, nosso tio-avô!
Vinham logo narrações da vida à beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e
matanças dos índios canoeiros, caiapós e xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele,
ajoelhado à soleira do rancho, a velha espingarda reiúna e respectiva munição ao lado,
mordendo impassível o cartucho, fizera frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros,
fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo à guarnição de tocar a rebate e acudir em
defesa às muralhas.
– Era pelo meio da noite, um luar tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto,
uma larga faixa branca pintada na testa. Isso servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho
ficara que nem porco-espim: crivado d'alto a baixo de frechas e tantas que, ao outro dia,
andando os soldados a apanhá-las nos arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram
para manter o fogo da cozinha semanas a fio. De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito.
– Tempos brabos – comentava.

(Ai, meu pobre herói obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de
paz numa cova rasa do cemitério da Barra, junto ao filho do Anhangüera, o desbravador de
meus pagos!)
Relatava agora, entre sério e jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio,
afrontando do último recruta ao comandante; de como faltaram então todos os recursos e
mantimentos naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o paude-
fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas, grazinavam
saltitantes nas embaúbas.
– Pum! pum! Botava um, botava dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho
pilado, servia ao pé do leito aos patrões devorados de febre.
– Bicho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que
prestasse. Como ele, só papagaio, vote! Parecia até o capeta em figura de ave.
Depois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera
engraçado com a mulher. O camarada riscara a parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe
resposta bem segura, entre costelas, no bucho...
E explicava: O anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa
Leopoldina – onde ele acabara de abater uma rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu
capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo decidido a armar sarseiro, cara amarrada,
berrando alto, gesticulando atrevido, arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de
cachaça nos bofes.
Ele ouviu, ouviu, como quem não entendia; mas num repente, ante um desaforo mais
grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o
famanaz pelos peitos, atirando-o com violência ao meio da rua.
O Domingos foi de roldão bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à
mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também
do lado de fora, a comprida faca do corte – reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o
passar. De novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando
aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra
veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.
– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue
do Minguinhos salpicando-o d'alto a baixo, todo fumegante, como brasa!
Animado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa
tarde mui límpida e calorenta d'agosto, um velho carajá que topara acocorado no alto duma
árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo, duma feita, quando vinha do campeio...
E anotava:
– Qual! Carajás... nação fraca...
– Mas mataste-o à toa, Casimiro?
– Ora, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a
vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori...
(cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...”
E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu atravessara o meu pampa campeador no meio do
caminho, a coronha da lazarina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras
e guarda-peito de mateiro, o chapelão para trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em
pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao sair do cerrado, onde andava a campear umas
reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado
rastros frescos num brejal, entre touças de caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas,
não topando vivalma. Daí a presunção em que vinha: pintada não fora, senão deixava algum
sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer cousa; e só muito faminta atacava cria taluda...
Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele estorvo.
– Desce do pau, ó tapuio!...
– Aí tori... aí tori... mata ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!...

– Ora, ora, o perereca batia a queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra
viver!... – quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe
nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo, vote!
Aqui interrompia a segunda mulher do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera –
toda lastimosa, um travo de zanga na voz:
– Pois tu não tens vergonha de contar cousas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!
– Mulher, mulher, mete-te com tua vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze
nas costas, mal contado; e não me arrependo, mais não fora, tanta gente ruim anda pelo
mundo!...
– E remorsos, nunca os teve? – indago.
O velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não
compreendera. Depois riu, a boca murcha espichando num bocejo cínico, onde sobressaía
desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem
contemplações e sem piedade para com os mais fracos, os vencidos...
– Leréia...
Sim, lérias, discutia eu no meu íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas
do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava, o busto ainda alto e espigado, onde os três
sangues da raça se caldeavam apaziguados, nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim
desde rapazote, à gandaia da natureza, a grande mestra da vida.
Quando fora da estopada do Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não
tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem dizer bicho do mato!...
Ora, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria
macabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas
enxurradas e animais bravios...
Terras bárbaras, gente forte!

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– Ai, a nostalgia do sertão!...
Pela manhã a Merência, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de
vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tostão o guampo. Também,
crivávamos-lhe de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava,
rezingando, a costa acorcovada.
Amigo: não val descrever a vida que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos.
Longe, numa terra inóspita para os pequenos e humildes, nesta trapeira velha onde noite alta
zune a ventania e vem visitar-me alcatéias de ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas
pequenas manias de rabiscador anônimo, o espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se
ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à
espera dum futuro que não chega e sabendo quão amarga sói às vezes ser a solidão para os que
meditam e sonham e quão duro é viver distante das cousas que nos foram familiares, relembro a
paisagem adusta de nossa velha terra, e confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em
minhas faces escaldadas, como óbulo votivo ao torrão onde vi a luz, onde minha infância
decorreu como todas, ai, tão depressa, tão descuidosa...
Mas basta de sentimentalismo!
Revê-la-ei? Não sei. Talvez nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver
cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos e contrários embates de
interesses e paixões mesquinhas, sinto que o meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora,
insensível e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o cinge e
aperta num supremo e frenético esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em
meio a sua tristeza, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens mais
amigas, filhas do meu Sonho e da minha Saudade...
Vale.
Rio... 1915

sábado, 13 de agosto de 2011

Mauro Santayana fala sobre prisões e algemas

por Mauro Santayana


Se os suspeitos de desvio de recursos públicos do Ministério do Turismo  são criminosos, ou não, cabe à Justiça decidir. Se o uso de algemas foi exagerado, ou não, os policiais envolvidos na operação podem esclarecer. Podemos, no entanto, e  mesmo sem pesquisas de opinião,  presumir: em sua maioria, as pessoas se sentem aliviadas quando vêem gente bem vestida e de posição social reconhecida,  sendo tratada como normalmente se tratam os pobres. Se a lei é igual para todos, todos devem ser tratados da mesma maneira: suspeitos ricos e miseráveis, tenham assaltado com a mão armada ou com a caneta que libera recursos para  sócios ocultos.


Há sinais de pressões contra a Chefe de governo e de Estado, a fim de que se esfriem as medidas saneadoras que ela vem tomando, a partir do grande escândalo do Ministério dos Transportes. Há articulações, no Congresso, que visam a emparedar o governo, a fim de que se interrompa a ação da Polícia Federal. Ora, a Polícia Federal atuou, nesse caso e em casos semelhantes, conforme a determinação da Justiça. E a Justiça, nesses casos, só se pronuncia quando provocada, seja pelos órgãos do Poder Executivo, seja pelo Ministério Público.  Há que se registrar, também, que, mesmo com as falhas e desvios de seus integrantes – que ela mesma investiga e toma as medidas necessárias – a Polícia Federal, nesses nossos tempos de poder civil, é vista com respeito e admiração pelos brasileiros. Enfim, conforme constatava Tancredo, governar é resistir às pressões.


Muitos parlamentares – entre eles líderes partidários – atuam como se estivessem fora do mundo. Não analisam os casos patentes de corrupção, nem as suspeitas muito bem fundadas. É difícil aceitar que sejam treinados (e à distância) quase dois mil “agentes de turismo” para atuar em Macapá, cidade de 400.000 habitantes e escassas atrações turísticas – e sem ligação rodoviária com o resto do país. Não parece sério. Os cidadãos começam a perceber que os tributos produzidos pelo seu trabalho se destinam, em grande parte, a custear serviços desnecessários, quando não são desviados para enriquecer empresários e servidores públicos  desonestos. Fala-se muito em reforma política, mas o Estado deve estar sempre em aprimoramento, com a eliminação de contratos de terceirização de serviços com organizações privadas, como as abomináveis Ongs que surgem para tudo e para nada. Os deputados não entendem que representam a nação e o seu primeiro dever é o de se contrapor ao poder executivo, principalmente no que se refere ao orçamento. Em lugar de exigir a boa distribuição dos recursos, de forma a atender ao bem-estar da população e aos investimentos que tragam resultados econômicos gerais, eles se empenham em obter, mediante as famosas emendas orçamentárias, verbas que beneficiem seus redutos eleitorais. Como a experiência demonstra, muitas vezes tais recursos terminam em  contas pessoais.


Mais grave, no caso brasileiro – e disso já tratamos muitas vezes neste espaço – é a promiscuidade entre o Parlamento e o Poder Executivo, que deviam ser bem separados, como é da boa norma nas repúblicas presidencialistas. Nenhum deputado ou senador poderia exercer um cargo executivo, a menos que renunciasse definitivamente ao mandato – como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos.


Os líderes políticos brasileiros não percebem que a grande crise dos estados contemporâneos é decorrente de uma globalização da economia imposta aos paises periféricos pelos centros financeiros internacionais, e que as suas consequências podem atingir-nos, como nos ocorreu no passado, se não construirmos a coesão interna, em torno de atos decisivos contra esses especuladores, dentro de um projeto estratégico e autônomo de desenvolvimento. A população só estará unida ao Estado, para enfrentar a tormenta internacional que se prevê, se confiar plenamente em suas instituições, que, ao livrar-se dos corruptores e peculatários,  recuperarão a confiança nacional.


A Europa e os congressistas norte-americanos estão interessados em salvar o capitalismo neoliberal e voltam ao receituário do Consenso de Washington. A Grécia está sendo forçada pelo Banco Central Europeu a privatizar tudo – e até mesmo a vender algumas de suas ilhas. Na Itália, o ministro das Finanças de Berlusconi anuncia a privatização do que sobrou do patrimônio público.


Um bem humorado blogueiro francês, Henry Moreigne, registrou ontem que os povos procuram por homens políticos “desesperadamente”. Ao analisar a crise econômica européia, ele conclui que os governos salvaram os banqueiros com dinheiro público e agora culpam os povos pela bancarrota. “Transferiram para o déficit público as dívidas privadas” – ele resume. E termina: “quando se quer matar um cão, dizem que ele está com raiva. Quando querem matar os estados, dizem que eles estão endividados”.

sábado, 30 de julho de 2011

Índios: 500 anos de Resistência

O litoral atlântico era ocupado por numerosos povos indígenas que falavam a mesma língua, o tupinambá. Viviam da pesca, da caça e da agricultura de subsistência, plantavam sobretudo mandioca, milho e feijão. No entanto, os portugueses que vieram para cá queriam plantar a cana-de-açúcar com a intenção de vender o açúcar na Europa, pois rendia muito dinheiro. É fácil concluir que entre os índios e esses invasores o choque seria inevitável e que a superioridade tecnológica dos portugueses determinaria em muitos casos a derrota dos índios. Os colonizadores adotaram o puro terror e o massacre, e muitas vezes o suborno, para obter a submissão dos povos indígenas. Atraídos pelos artefatos europeus, como anzóis, foices e machados, os portugueses conseguiam em troca a mão-de-obra indígena. Os portugueses também exploravam as rivalidades intertribais. Era tática comum fazer alianças com uma tribo para lutar contra uma outra rival. Ao final da guerra, os antigos aliados eram igualmente aniquilados ou submetidos. Mas algumas tribos usaram da mesma tática, como ocorreu nas disputas entre franceses  portugueses nas primeiras décadas da colonização.
Sobreviveram poucas nações no litoral brasileiro: os Tremembé e os Tapeba, no Ceará; os Potiguara, na baía da Traição (Paraíba); os Pataxó, em Coroa Vermelha e Barra Velha (Bahia); os Tupinikim, ao norte do Espírito Santo. São grupos remanescentes que perderam sua língua original e falam hoje o português. Vivem discriminados pela sociedade nacional, mas continua considerando-se indígenas.  
No litoral paulista e capixaba vivem os Guarani, que vieram mais tarde do Paraguai, mas enfrentam os mesmos problemas das outras nações do litoral. Apesar de tudo parte da cultura indígena sobreviveu, mesmo com a miscigenação, que muitas vezes foi fruto de violência contra esses povos.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Conexão Roberto D'avila Homenageia o Geógrafo Milton Santos

O militante de idéias Geógrafo Milton Santos criticou a globalização, mas acreditava em transformação social.

 

"O sonho obriga o homem a pensar"
Milton Santos
 

Milton Santos (1926-2001) é considerado o maior geógrafo brasileiro pelos colegas de profissão. O
professor  de  voz  calma  e  olhar  tranquilo  sublinhou  o  aspecto  humano  da  geografia  e  criticou  a
globalização  perversa.  Via  na  população  pobre  o  ator  social  capaz  de  promover  uma  outra
globalização, que defendeu em livros e conferências pelo mundo.

Milton introduziu importantes discussões na geografia, como a retomada de autores clássicos, e foi
um dos expoentes do movimento de  renovação crítica da disciplina. Preocupado  com a questão
metodológica,  construiu  conceitos,  aprofundou  o  debate  epistemológico  e  buscou  na
transdisciplinaridade uma visão totalizadora da sociedade.
Esquerdista  convicto,  não  se  filiou  a  partidos:  "não  sou  militante  de  coisa  alguma,  apenas  de
idéias",  diz  em  uma  de  suas  frases mais  divulgadas. O  estilo  independente  revela  a  influência
sartreana  desse  brasileiro  que  se  celebrizou  na  França,  onde  obteve  o  doutorado  e  lecionou
durante a ditadura.
...
Milton foi consultor da Organização das Nações Unidas, da Unesco, da Organização Internacional
do Trabalho e  da Organização dos Estados Americanos. Também  foi  consultor  em  várias  áreas
junto  aos  governos  da  Argélia, Guiné-Bissau  e  Venezuela.  Possuía  13  títulos  de  doutor  honoris
causa,  recebidos  no  Brasil,  França,  Argentina  e  Itália,  entre  outros.  Foi  membro  do  comitê  de
redação de revistas especializadas em geografia no Brasil e exterior. Fez pesquisas e conferências
em mais de 20 países, dentre eles Japão, México, Índia, Tunísia, Benin, Gana, Espanha e Cuba.
Recebeu em 1997 o prêmio Jabuti pelo melhor livro em ciências humanas: A natureza do espaço:
técnica e tempo, razão e emoção. Em 1999 recebeu o Prêmio Chico Mendes por sua resistência.
Foi condecorado Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico em 1995. Hoje, o geógrafo
tantas vezes laureado empresta seu nome ao Prêmio Milton Santos de Saúde e Ambiente, criado
pela Fundação Oswaldo Cruz.
Milton  Santos  nunca  participou  de  movimentos  negros -  acreditava  que  deveriam  conquistar
reconhecimento em atitudes como, por exemplo, ingressar na universidade. "Minha vida de todos
os dias é a de negro", declarou. "Mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela
não é das mais confortáveis."



Raquel Aguiar
Ciência Hoje/RJ
dezembro/2001



domingo, 24 de julho de 2011

Conexão Roberto D'Avila Entrevista Carlos Heitor Cony

 
Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926, fez humanidades e curso de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances “A Verdade de Cada Dia” e “Tijolo de Segurança”. Cony trabalha na imprensa desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista  e editor. Depois de várias prisões políticas durante a ditadura militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete, no qual lançou a revista Ele e Ela e dirigiu as revistas Desfile e Fatos&Fotos. Atualmente, é colunista da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN e da Band News. Como diretor da teledramaturgia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas “A Marquesa de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”. Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L'Ordre des Arts et des Lettres. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. “O Ventre” romance de estréia de Cony fez em 2008 cinquenta anos.
Ganhou os seguintes prêmios:
Manuel Antônio de Almeida (em 1956 e 1957)
Jabuti (em 1996, 1998 e 2000)
Livro do Ano (em 1996 e 1998 e 2000)
Prêmio Nacional Nestlé (em 1997)
Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de obra, em 1996.


Biografia :Site do Cony