Hugo de Carvalho Ramos nasceu em 21 de maio de 1895, em Vila Boa, então Capital do Estado de Goiás. Iniciou seus estudos na cidade natal e depois foi para o Rio de Janeiro, onde, em 1916, matriculou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1917, publicou Tropas e Boiadas,coletânea de contos que até hoje permanece como uma das obras goianas mais festejadas. Em 1920, estando prestes a concluir seu curso jurídico e, em crise de depressão, viaja ao interior de Minas Gerais e São Paulo. Em 31 de março de 1921, quando retorna ao Rio de Janeiro, suicidou-se, enforcando-se com uma corda de rede. Sempre presente na história da literatura pelo seu livro de contos, deixou poesias que mereceram inclusão no livro de Andrade Muricy sobre o Simbolismo.
Já que vais brevemente à chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num
tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o manténs),
próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por mim a última vez que lá estive. Olha, não te
esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e
garranchento; e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a
comprida cana de pesca sobraçada, farnel d'iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto
e em mangas de camisa quase sempre – tal o nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito anos, – a
cantar velhas trovas nativas pelas estradas...
Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos
de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão.
Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só,
quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e
barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso
de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra
banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao
sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de
roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos
pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d'argila vermelha, entranhando-se do outro
lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem
habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os
cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor...
Apressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre
Chegadinho, dos batuques e muxirões da roça, ora aquela dolente melopéia do Baleador, tão
simples e evocadora:
Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira,
A porteira não quebrou!...
Assim alegremente, fazia os dois quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam,
no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.
No Manuel Flor, tapera antiga que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de
que restavam apenas os moirões d'aroeira, carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos
gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo
trilho inculto que levava à pedreira favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas
taquaras apodrentadas adensavam os mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol,
impunha silêncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da
pescaria...
Voltávamos ao sítio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro,
quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada,
mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando às vezes o dedo dolorido duma ferroada de
jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa
cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lobós que lhe seriam como
prêmio adjudicados.
De longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os
primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e assustados dum trambolhão a um
pinote ou volteio mais rápido.
Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde.
Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas dos
jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes.
Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos
moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pêlo
arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho.
Distante, na estrada da Barra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga
de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a
estalar ao longe, e a voz pigarrosa do caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a
incitar aos muxoxos a mulada:
– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!... Penacho!...
E mais além, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se,
moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas e estrídulas as outras, de lado a lado
rememorando a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...
Anoitecia. A paz do sertão, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa
tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacenta d'algodão, alumiada ao centro,
vagamente, pela candeia de três bicos, que se espevitava de vez em vez.
Surgiam o angu de caruru nos tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto,
em travessas e pratos estanhados, rebrilhando à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão
de caninha e o frasco de malagueta para os mais velhos, os que gostassem do condimento
rústico.
Empanturravam-se como pagãos que éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas
colônias...
Que rica bóia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao
tempo que se contava ainda na fieira dos anos onze, doze, treze primaveras apenas!
Não raro, o caseiro do sítio, forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o
braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três léguas derredor – vinha para a soleira da porta,
encapotava-se banzento ao batente, acendia um cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como
capucho d'algodoeiro, punha-se a devanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e
pequenos.
Eram sempre histórias antigas, das passadas eras do Império e presídios do Araguaia.
Ficávamos a escutar, sonhando com essa região longínqua de canguçus e caboclos desnudos,
areias infindáveis alvejando à distância, onde a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do
luar, e de cujo fundo das águas saíam, em estação propícia, as tracajás à desova pelas praias
d'arribação...
E a mente exaltava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e
outros que, mais felizes, tinham visto ou descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a
selvática poesia dos sertões brasílios...
– Ah! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular
do capitão José Manuel, teu pai, nosso tio-avô!
Vinham logo narrações da vida à beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e
matanças dos índios canoeiros, caiapós e xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele,
ajoelhado à soleira do rancho, a velha espingarda reiúna e respectiva munição ao lado,
mordendo impassível o cartucho, fizera frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros,
fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo à guarnição de tocar a rebate e acudir em
defesa às muralhas.
– Era pelo meio da noite, um luar tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto,
uma larga faixa branca pintada na testa. Isso servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho
ficara que nem porco-espim: crivado d'alto a baixo de frechas e tantas que, ao outro dia,
andando os soldados a apanhá-las nos arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram
para manter o fogo da cozinha semanas a fio. De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito.
– Tempos brabos – comentava.
(Ai, meu pobre herói obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de
paz numa cova rasa do cemitério da Barra, junto ao filho do Anhangüera, o desbravador de
meus pagos!)
Relatava agora, entre sério e jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio,
afrontando do último recruta ao comandante; de como faltaram então todos os recursos e
mantimentos naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o paude-
fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas, grazinavam
saltitantes nas embaúbas.
– Pum! pum! Botava um, botava dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho
pilado, servia ao pé do leito aos patrões devorados de febre.
– Bicho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que
prestasse. Como ele, só papagaio, vote! Parecia até o capeta em figura de ave.
Depois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera
engraçado com a mulher. O camarada riscara a parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe
resposta bem segura, entre costelas, no bucho...
E explicava: O anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa
Leopoldina – onde ele acabara de abater uma rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu
capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo decidido a armar sarseiro, cara amarrada,
berrando alto, gesticulando atrevido, arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de
cachaça nos bofes.
Ele ouviu, ouviu, como quem não entendia; mas num repente, ante um desaforo mais
grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o
famanaz pelos peitos, atirando-o com violência ao meio da rua.
O Domingos foi de roldão bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à
mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também
do lado de fora, a comprida faca do corte – reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o
passar. De novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando
aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra
veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.
– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue
do Minguinhos salpicando-o d'alto a baixo, todo fumegante, como brasa!
Animado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa
tarde mui límpida e calorenta d'agosto, um velho carajá que topara acocorado no alto duma
árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo, duma feita, quando vinha do campeio...
E anotava:
– Qual! Carajás... nação fraca...
– Mas mataste-o à toa, Casimiro?
– Ora, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a
vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori...
(cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...”
E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu atravessara o meu pampa campeador no meio do
caminho, a coronha da lazarina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras
e guarda-peito de mateiro, o chapelão para trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em
pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao sair do cerrado, onde andava a campear umas
reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado
rastros frescos num brejal, entre touças de caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas,
não topando vivalma. Daí a presunção em que vinha: pintada não fora, senão deixava algum
sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer cousa; e só muito faminta atacava cria taluda...
Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele estorvo.
– Desce do pau, ó tapuio!...
– Aí tori... aí tori... mata ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!...
– Ora, ora, o perereca batia a queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra
viver!... – quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe
nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo, vote!
Aqui interrompia a segunda mulher do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera –
toda lastimosa, um travo de zanga na voz:
– Pois tu não tens vergonha de contar cousas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!
– Mulher, mulher, mete-te com tua vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze
nas costas, mal contado; e não me arrependo, mais não fora, tanta gente ruim anda pelo
mundo!...
– E remorsos, nunca os teve? – indago.
O velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não
compreendera. Depois riu, a boca murcha espichando num bocejo cínico, onde sobressaía
desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem
contemplações e sem piedade para com os mais fracos, os vencidos...
– Leréia...
Sim, lérias, discutia eu no meu íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas
do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava, o busto ainda alto e espigado, onde os três
sangues da raça se caldeavam apaziguados, nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim
desde rapazote, à gandaia da natureza, a grande mestra da vida.
Quando fora da estopada do Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não
tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem dizer bicho do mato!...
Ora, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria
macabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas
enxurradas e animais bravios...
Terras bárbaras, gente forte!
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– Ai, a nostalgia do sertão!...
Pela manhã a Merência, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de
vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tostão o guampo. Também,
crivávamos-lhe de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava,
rezingando, a costa acorcovada.
Amigo: não val descrever a vida que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos.
Longe, numa terra inóspita para os pequenos e humildes, nesta trapeira velha onde noite alta
zune a ventania e vem visitar-me alcatéias de ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas
pequenas manias de rabiscador anônimo, o espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se
ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à
espera dum futuro que não chega e sabendo quão amarga sói às vezes ser a solidão para os que
meditam e sonham e quão duro é viver distante das cousas que nos foram familiares, relembro a
paisagem adusta de nossa velha terra, e confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em
minhas faces escaldadas, como óbulo votivo ao torrão onde vi a luz, onde minha infância
decorreu como todas, ai, tão depressa, tão descuidosa...
Mas basta de sentimentalismo!
Revê-la-ei? Não sei. Talvez nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver
cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos e contrários embates de
interesses e paixões mesquinhas, sinto que o meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora,
insensível e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o cinge e
aperta num supremo e frenético esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em
meio a sua tristeza, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens mais
amigas, filhas do meu Sonho e da minha Saudade...
Vale.
Rio... 1915