sábado, 30 de julho de 2011

Índios: 500 anos de Resistência

O litoral atlântico era ocupado por numerosos povos indígenas que falavam a mesma língua, o tupinambá. Viviam da pesca, da caça e da agricultura de subsistência, plantavam sobretudo mandioca, milho e feijão. No entanto, os portugueses que vieram para cá queriam plantar a cana-de-açúcar com a intenção de vender o açúcar na Europa, pois rendia muito dinheiro. É fácil concluir que entre os índios e esses invasores o choque seria inevitável e que a superioridade tecnológica dos portugueses determinaria em muitos casos a derrota dos índios. Os colonizadores adotaram o puro terror e o massacre, e muitas vezes o suborno, para obter a submissão dos povos indígenas. Atraídos pelos artefatos europeus, como anzóis, foices e machados, os portugueses conseguiam em troca a mão-de-obra indígena. Os portugueses também exploravam as rivalidades intertribais. Era tática comum fazer alianças com uma tribo para lutar contra uma outra rival. Ao final da guerra, os antigos aliados eram igualmente aniquilados ou submetidos. Mas algumas tribos usaram da mesma tática, como ocorreu nas disputas entre franceses  portugueses nas primeiras décadas da colonização.
Sobreviveram poucas nações no litoral brasileiro: os Tremembé e os Tapeba, no Ceará; os Potiguara, na baía da Traição (Paraíba); os Pataxó, em Coroa Vermelha e Barra Velha (Bahia); os Tupinikim, ao norte do Espírito Santo. São grupos remanescentes que perderam sua língua original e falam hoje o português. Vivem discriminados pela sociedade nacional, mas continua considerando-se indígenas.  
No litoral paulista e capixaba vivem os Guarani, que vieram mais tarde do Paraguai, mas enfrentam os mesmos problemas das outras nações do litoral. Apesar de tudo parte da cultura indígena sobreviveu, mesmo com a miscigenação, que muitas vezes foi fruto de violência contra esses povos.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Conexão Roberto D'avila Homenageia o Geógrafo Milton Santos

O militante de idéias Geógrafo Milton Santos criticou a globalização, mas acreditava em transformação social.

 

"O sonho obriga o homem a pensar"
Milton Santos
 

Milton Santos (1926-2001) é considerado o maior geógrafo brasileiro pelos colegas de profissão. O
professor  de  voz  calma  e  olhar  tranquilo  sublinhou  o  aspecto  humano  da  geografia  e  criticou  a
globalização  perversa.  Via  na  população  pobre  o  ator  social  capaz  de  promover  uma  outra
globalização, que defendeu em livros e conferências pelo mundo.

Milton introduziu importantes discussões na geografia, como a retomada de autores clássicos, e foi
um dos expoentes do movimento de  renovação crítica da disciplina. Preocupado  com a questão
metodológica,  construiu  conceitos,  aprofundou  o  debate  epistemológico  e  buscou  na
transdisciplinaridade uma visão totalizadora da sociedade.
Esquerdista  convicto,  não  se  filiou  a  partidos:  "não  sou  militante  de  coisa  alguma,  apenas  de
idéias",  diz  em  uma  de  suas  frases mais  divulgadas. O  estilo  independente  revela  a  influência
sartreana  desse  brasileiro  que  se  celebrizou  na  França,  onde  obteve  o  doutorado  e  lecionou
durante a ditadura.
...
Milton foi consultor da Organização das Nações Unidas, da Unesco, da Organização Internacional
do Trabalho e  da Organização dos Estados Americanos. Também  foi  consultor  em  várias  áreas
junto  aos  governos  da  Argélia, Guiné-Bissau  e  Venezuela.  Possuía  13  títulos  de  doutor  honoris
causa,  recebidos  no  Brasil,  França,  Argentina  e  Itália,  entre  outros.  Foi  membro  do  comitê  de
redação de revistas especializadas em geografia no Brasil e exterior. Fez pesquisas e conferências
em mais de 20 países, dentre eles Japão, México, Índia, Tunísia, Benin, Gana, Espanha e Cuba.
Recebeu em 1997 o prêmio Jabuti pelo melhor livro em ciências humanas: A natureza do espaço:
técnica e tempo, razão e emoção. Em 1999 recebeu o Prêmio Chico Mendes por sua resistência.
Foi condecorado Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico em 1995. Hoje, o geógrafo
tantas vezes laureado empresta seu nome ao Prêmio Milton Santos de Saúde e Ambiente, criado
pela Fundação Oswaldo Cruz.
Milton  Santos  nunca  participou  de  movimentos  negros -  acreditava  que  deveriam  conquistar
reconhecimento em atitudes como, por exemplo, ingressar na universidade. "Minha vida de todos
os dias é a de negro", declarou. "Mantenho com a sociedade uma relação de negro. No Brasil, ela
não é das mais confortáveis."



Raquel Aguiar
Ciência Hoje/RJ
dezembro/2001



domingo, 24 de julho de 2011

Conexão Roberto D'Avila Entrevista Carlos Heitor Cony

 
Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926, fez humanidades e curso de filosofia no Seminário de São José. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida (em 1957 e 1958) com os romances “A Verdade de Cada Dia” e “Tijolo de Segurança”. Cony trabalha na imprensa desde 1952, inicialmente no Jornal do Brasil, mais tarde no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista  e editor. Depois de várias prisões políticas durante a ditadura militar e de um período no exterior, entrou para o grupo Manchete, no qual lançou a revista Ele e Ela e dirigiu as revistas Desfile e Fatos&Fotos. Atualmente, é colunista da Folha de S.Paulo, comentarista da rádio CBN e da Band News. Como diretor da teledramaturgia da Rede Manchete, apresentou os projetos e as sinopses das novelas “A Marquesa de Santos”, “Dona Beija” e “Kananga do Japão”. Em 1998, o governo francês, no Salão do Livro, em Paris, condecorou-o com a L'Ordre des Arts et des Lettres. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2000. “O Ventre” romance de estréia de Cony fez em 2008 cinquenta anos.
Ganhou os seguintes prêmios:
Manuel Antônio de Almeida (em 1956 e 1957)
Jabuti (em 1996, 1998 e 2000)
Livro do Ano (em 1996 e 1998 e 2000)
Prêmio Nacional Nestlé (em 1997)
Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de obra, em 1996.


Biografia :Site do Cony

sábado, 23 de julho de 2011

A Violência das Leis,Por Leon Tolstoi

Biografia:
Nascido numa família nobre, Leon Tolstoi ficou órfão aos nove anos e foi educado por preceptores.

Em 1843, iniciou o curso de letras e direito na Universidade de Kazan. Depois de formado, passou um período em Moscou e logo se alistou na guarnição do Cáucaso, seguindo seu irmão Nicolenka, oficial do exército russo.

No Cáucaso, escreveu o livro "Infância" e a primeira parte de "Memórias". "Infância" foi publicado em 1852 e alcançou grande êxito.
Depois de nomeado suboficial, em 1854, Tolstoi voltou brevemente a sua terra natal, mas retornou à vida militar, participando da Guerra da Criméia.

Em 1856, abandonada a carreira militar, Leon Tolstoi passou a viver em sociedade, ampliando suas relações pessoais. Viajou à Europa, visitando diversos países. Ao regressar, isolou-se em sua propriedade rural, determinado a dedicar-se à literatura. Casou-se nesse período com Sofia Bers, com quem teve nove filhos.

Em 1865, iniciou a elaboração de "Guerra e Paz", uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Trata-se de um extenso romance que aborda as guerras napoleônicas e traça um quadro da sociedade russa do início do século 19.
  
A VIOLÊNCIA DAS LEIS

Por Leon Tolstói

Muitas constituições foram criadas de modo a fazer com que as pessoas
acreditassem que todas as leis estabelecidas atendiam a desejos expressos pelo povo. Mas
a verdade é que não só nos países autocráticos, como naqueles “supostamente” mais
livres as leis não foram feitas para atender a vontade da maioria, mas sim a VONTADE
DAQUELES QUE DETÊM O PODER. Portanto elas serão sempre, e em toda a parte,
aqueles que MAIS VANTAGENS POSSAM TRAZER À CLASSE DOMINANTE E AOS
PODEROSOS. Em toda a parte e sempre, as leis são impostas utilizando os únicos meios
capazes de fazer com que algumas pessoas se submetam à vontade de outras, isto é,
pancadas, perda da liberdade e assassinato. Não há outro meio.
Nem poderia ser de outro modo, já que as leis são uma forma de exigir que
determinadas regras sejam cumpridas e de obrigar determinadas pessoas a cumpri-las
(ou seja, fazer o que outras pessoas querem que elas façam) E ISSO SÓ PODE SER
OBTIDO COM PANCADAS, PERDA DA LIBERDADE E COM A MORTE. Se as leis existem,
é necessário que haja uma força capaz de obrigar as pessoas a respeita-las. E só há uma
força capaz de fazer com que alguns seres se submetam à vontade de outros e esta força é
a violência. Não a violência simples, que alguns homens usam contra seus semelhantes
em momento de paixão, mas uma VIOLÊNCIA ORGANIZADA, usada por aqueles que tem
o poder nas mãos para fazer com que os outros obedeçam à sua vontade.
Assim, a essência da legislação não está no sujeito, no objeto, no direito, na idéia
do domínio da vontade coletiva do povo ou em qualquer outra condição tão confusa e
indefinida, mas sim no fato de que AQUELES QUE CONTROLAM A VIOLÊNCIA
ORGANIZADA DISPÕEM DE PODERES PARA FORÇAR OS OUTROS A OBEDECÊ-LOS,
fazendo aquilo que eles querem que seja feito.
Assim, uma definição exata e irrefutável para legislação, que pode ser entendida
por todos, é esta: “AS LEIS SÃO REGRAS FEITAS POR PESSOAS QUE GOVERNAM POR
MEIO DA VIOLÊNCIA ORGANIZADA, QUE, QUANDO NÃO ACATADAS, PODEM FAZER
COM QUE AQUELES QUE SE RECUSAM A OBEDECÊ-LAS SOFRAM PANCADAS, A
PERDA DA LIBERDADE E ATÉ MESMO A MORTE.”

sábado, 16 de julho de 2011

A escravidão ainda nos assombra,por Jean Wyllys

Artigo publicado na Revista Carta Capital

Embora abolida oficialmente, a escravidão no Brasil ainda resiste de forma clandestina (e, às vezes, nem tão clandestina assim). Parte significativa da sociedade civil cansou de esperar pela boa vontade dos parlamentares e, com razão, pressiona-os para que aprovem definitivamente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que determina a expropriação das terras onde for flagrado trabalho escravo.
Esta PEC já foi aprovada no Senado e, em primeiro turno, na Câmara. Mas, para ser totalmente aprovada e, assim, alterar a Constituição, ela precisa ser votada em segundo turno – algo que a bancada de parlamentares que representam o grande agronegócio (em que, em muitos casos, vigora o trabalho escravo) não quer. Dados do Ministério do Trabalho revelam que mais de cinco mil pessoas foram resgatadas de situações de trabalho escravo nos últimos dois anos.
Exposta assim, em palavras, a situação em que viviam esses milhares de seres humanos não parece tão cruel. É preciso que se conheça de perto esta desgraça para que se tenha noção do quanto ela é chocante: o cidadão, na busca por um emprego que lhe permita se alimentar e aos seus filhos ou pais, aceita um trabalho duro e com alta carga horária. Assim, ele já começa o dia “devendo” ao patrão e não consegue deixar o trabalho porque não tem jamais condições de pagar a “dívida”, que só aumenta. Fugir? Impossível! “Jagunços”, “capatazes”, enfim, uma guarda privada e fortemente armada está sempre pronta para abater aquele que ousar escapar sem pagar.
Muitos desses escravos são crianças ou adolescentes que, na esperança de não morreram de fome, abandonaram a escola em busca de trabalho. É uma situação aviltante, chocante! E o pior é que alguns dos que mantêm seres humanos em regime de escravidão posam publicamente como homens de bem e “cristãos” devotos. Isso quando não pagam fortunas a agências de publicidade para promoverem suas empresas que vivem do trabalho escravo. Como diz a letra da canção de Gilberto Gil, a usura dessa gente, já virou um aleijão. Gente hipócrita!
A escravidão é um crime contra a humanidade. O artigo 1o. da convenção assinada em Genebra ainda em 1926 define a escravidão como “o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem os atributos do direito a propriedade ou alguns deles”. Já segundo a “convenção suplementar relativa à abolição da escravidão”, adotada também em Genebra, só que em 1956, estão inclusas entre as instituições e práticas análogas à escravidão: a servidão por motivos de dívida, o cativeiro, o casamento forçado (mediante pagamento aos pais, ao tutor ou qualquer pessoa ou grupo), assim como o trabalho forçado de crianças e de adolescentes.
É possível que as pessoas de bem não se dêem conta hoje do quanto este crime é doloroso para suas vítimas porque os livros de história, por meio dos quais elas estudaram e estudam, costumam representar a escravidão de negros, no passado, como algo indolor. Se a escravidão, embora abolida oficialmente, cresce debaixo do nosso nariz, é porque o abolicionista Joaquim Nabuco estava certo quando afirmou ainda no século XIX que a escravidão permaneceria “por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Como é que conseguimos conviver com ela ao mesmo tempo em que afirmamos – em mesas de bar ou durante o intervalo para o café – que temos vergonha do fato de o Brasil ter sido um país cujo Estado praticou a escravidão e o tráfico internacional de escravos? Bons sentimentos e intenções não bastam (o dito popular é feliz em sua afirmação de que, de boas intenções, o inferno anda cheio)! É preciso mobilização!
É chegada a hora de cobrar de nossos parlamentares a aprovação da PEC e políticas públicas que combatam e previnam a escravidão e/ou as situações análogas a ela. É chegada a hora de denunciar os casos de escravidão à imprensa ou aos blogs progressistas. É chegada a hora de rogar aos nossos deuses que eles façam com que o chicote seja, por fim, pendurado; e que devolvam a liberdade a quem, para ser livre, foi criado.

Jean Wyllys

Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Entrevista de Mauro Santayana ao Programa Café na Política



O PREÇO DA ESTABILIADADE

Princípio de filosofia moral recomenda não separar os meios dos fins: o meio faz parte do fim. Em suma, o caminho é, em si mesmo, o destino. O cinismo político parte da posição contrária: na busca pelo poder, ou na luta pela sua manutenção, todos os meios se legitimam. Daí a mal chamada ética da responsabilidade, que celebrado sociólogo, no exercício da presidência da República, defendeu, ao citar Weber em aula magna – emblematicamente proferida em um hospital para médicos e enfermos. A ética repele adjetivos; é ou não é. Naquele governo não foi, mas o presidente era o enfant gâté dos aristocratas e banqueiros, nacionais e internacionais, e seus vícios – como as privatizações, que fizeram fortunas imensas – foram convertidos em virtudes pelos seus áulicos e beneficiados.

A política é, e sempre será, o confronto entre uma posição e a outra: entre os que, em nome da ética, consideram os fins como o prolongamento dos meios, e os que, na apologia do realismo político, justificam os vícios dos meios como construtores de hipotética virtude final.

O governo, para a preocupação de todos os brasileiros sensatos, está a caminho de uma crise política, que pode ser vencida rapidamente ou conduzir a resultados indesejáveis. A presidente da República se encontra em um labirinto que as circunstâncias levantaram em torno de seu gabinete. Os compromissos, naturais e inevitáveis, assumidos durante a campanha, não lhe permitiram usufruir das prerrogativas constitucionais de escolher livremente os seus ministros. Teve que atender aos partidos que constituem a maioria parlamentar, nesse regime teratológico de que padecemos, que não é presidencialista, parlamentarista, ou congressual - como o dos Estados Unidos - mas sim, de promiscuidade entre o três poderes. Fala-se muito em reforma política, embora sempre se pense em reforma eleitoral, mas ela não se fará sem que ocorra uma revolução, não necessariamente violenta, mas a cada dia mais provável.

Os homens públicos devem partir do princípio de que o mandato não é um negócio que enriqueça, mas um serviço que deve ser compensado com subsídios decentes. É um erro considerar elevada a remuneração dos altos servidores do Estado, em qualquer um dos poderes; por mais altos fossem – e não são - onerariam menos o povo do que os custos históricos da corrupção. E é erro ainda maior permitir que parlamentares exerçam – como mais de duzentos o fazem - determinadas atividades durante o seu mandato. Um médico poderá manter a sua clínica, assim como um jornalista continuar assinando a sua coluna, ou um arquiteto a riscar os seus projetos, desde que não o façam para o setor público. Mas é evidente que um parlamentar, sobretudo quando conhece os segredos de Estado, não pode ser consultor de empresas, de quaisquer empresas, como centenas o fazem, convém repetir. Mesmo que seus clientes não sejam do setor público, os seus conselhos, fundados na experiência de servidor da República, constituem vantagem competitiva que, embora não prevista nas leis, configura concorrência desleal no mercado.

A estabilidade política, em qualquer país, está acima da inocência ou do pecado. A história dos povos registra momentos em que a ingenuidade construiu crises, e outros, nos quais a delinqüência era evidente para conduzir à queda dos governos. É bom recorrer sempre à advertência de Richelieu de que os Estados, sendo instituições temporais, não gozam do privilégio divino da salvação eterna: eles podem perder-se em um minuto, vítimas de decisão equivocada do soberano.
É inimaginável que homens públicos responsáveis, inocentes ou não, se recusem a deixar qualquer cargo, quando a sua permanência coloca em risco o governo e os interesses soberanos da República. 


quarta-feira, 6 de julho de 2011

José Eduardo Agualusa - Manual Prático de Levitação Texto

Manual prático de levitação
José Eduardo Agualusa

Não gosto de festas. Aborrece-me a conversa fiada, o fumo, a alegria fátua dos bêbados. Irritam-me ainda mais os pratos de plástico. Os talheres de plástico. Os copos de plástico. Servem-me coelho assado num prato de plástico, forçam-me a comer com talheres de plástico, o prato nos joelhos, porque não há mais lugares à mesa, e inevitavelmente o garfo quebra-se. A carne salta e cai-me nas calças. Derramo o vinho. Além disso odeio coelho. Faço um esforço enorme para que ninguém repare em mim, mas há sempre uma mulher que, a dada altura, me puxa pelo braço, vamos dançar?, e lá vou eu, de rastos, atordoado pelo estrídulo dissonante dos perfumes e o volume da música. Terminado o número, um tanto humilhado porque, confesso, tenho o pé pesado, sirvo-me de um uísque, com muito gelo, mas logo alguém me sacode, o que foi, meu velho, estás chateado?, e eu, que não, esforçando-me por sorrir, esforçando-me por rir às gargalhadas, como o resto da chusma, chateado? por que havia de estar chateado?, o dever da alegria chama-me, grito, lá vou, lá vou, e regresso à pista, e finjo que danço, finjo que estou feliz, pulando para a direita, pulando para a esquerda, até que se esqueçam de mim. Naquela noite estava quase a ser esquecido quando reparei num sujeito alto, todo vestido de branco, como um lírio, alva cabeleira à solta pelos ombros, a rondar sombriamente os pastéis de bacalhau. O homem parecia estar ali por engano. Achei-o de repente tão desamparado quanto eu. Podia ser eu, excepto pela roupa, pois evito o branco. O branco não é muito apropriado para o meu negócio. Menos ainda as cores garridas. Obedeço ao lugar-comum — visto-me de negro. Aproximei-me do homem, numa solidariedade de náufrago, e estendi-lhe a mão.

— Sou Fulano — disse-lhe. — Vendo caixões.

A mão do homem (entre a minha) era lassa e pálida. Os olhos tinham um brilho escuro, vago, como um lago, à noite, iluminado pela luz do luar. A maioria das pessoas não consegue disfarçar o choque, ou o riso, depende da circunstância, quando escutam a palavra caixões. Alguns hesitam: paixões? Não, corrijo, caixões. O sujeito, porém, permaneceu imperturbável.

— Nenhum nome é verdadeiro —, respondeu-me, com forte sotaque pernambucano. — Mas pode me chamar Emanuel Subtil.

— E o que faz o senhor?

— Sou professor...

— Ah Sim? E de quê?

Emanuel Subtil sacudiu a cabeleira num movimento distraído:

— Dou aulas de levitação.

— Levitação?!

— Levitação, sabe?, fenômeno psíquico, anímico, mediúnico, em que uma pessoa ou uma coisa é erguida do solo sem um motivo visível, apenas devido ao esforço mental. A mente movimenta fluidos ectoplasmáticos capazes de vencer a força da gravidade. Eu ensino técnicas de levitação. Sem arames nem outros truques soezes.

— Interessante! Muito interessante! —, respondi, tentando ganhar tempo para pensar. — E tem muitos alunos?

O homem sorriu-me gravemente. É certo que não, disse, nos dias de hoje são poucas as pessoas interessadas em levitar. Tristes tempos estes. O triunfo do materialismo tem vindo a corromper tudo. Escasseiam as vocações para as obras do espírito. As vocações e a força mental — sugeri timidamente. Sim, confirmou Emanuel Subtil, sacudindo outra vez a magnífica cabeleira branca, e a força mental. As pessoas preferem manter os pés bem assentes na terra. E levitava, ele?, quis eu saber. Isto é, praticava com freqüência essa arte esquecida? Emanuel Subtil sorriu absorto:

— Não há dia em que não pratique. Levitar, meu caro senhor, é o mais completo dos exercícios. Cinco minutos em suspensão, logo pela manhã, ao romper da alva, estimula todos os órgãos vitais e regenera a alma.

Inclusive acontecia-lhe às vezes levitar por descuido. Contou-me que São José de Copertino, que viveu entre 1603 e 1663, sofria ataques de imponderabilidade sempre que algo o emocionava. Chamava a isso, com terror, "as minhas vertigens". Um domingo, durante a missa, elevou-se no vazio e durante largos minutos pairou numa aflição sobre o altar, em meio à chama aguda das velas, e ao alarido das beatas, ficando gravemente queimado. A igreja afastou-o, durante 35 anos, de todos os rituais públicos, em razão destas práticas extravagantes, mas nem isso impediu que a sua fama se propagasse. Uma tarde, passeando o santo homem pelos jardins do mosteiro, em companhia de um monge beneditino, foi subitamente arrastado até aos ramos mais altos de uma oliveira por um golpe de vento. Infelizmente sucedia com ele o mesmo que com os gatos, ou os balões, toda a sua propensão era para subir, não para descer, de forma que os monges tiveram de o resgatar de lá com o auxílio de uma escada. Murmurei qualquer coisa sobre a vocação mística das oliveiras, a tendência que demonstram, desde há milênios, para acolherem santos e demiurgos. Emanuel Subtil, porém, ignorou a minha observação. O caso de São José de Copertino, explicou, servia-lhe somente para ilustrar os perigos que incorre um leigo, ainda que excepcionalmente talentoso, ao praticar a arte da levitação sem o acompanhamento de um mestre:

— Você oferecia um Ferrari a uma criança? Certamente que não!

Concordei logo. É claro, por amor de Deus!, não o punha nem nas minhas mãos.

— Levitar não é para qualquer um, — prosseguiu Emanuel Subtil carregando nas palavras. — Levitar exige fé, perseverança e ainda algo mais: responsabilidade. Quer tentar?

E logo ali expôs as suas condições. Trezentos reais por mês. Quatro vezes por semana. Uma hora cada sessão. Naturalmente, acrescentou, seria impossível observar resultados antes de três a quatro meses.

— E se não obtiver resultados?

Emanuel Subtil sossegou-me. Em três meses, convenientemente orientado, até um elefante consegue levitar. Mas ainda que eu me revelasse tão mau levitador quanto bailarino (só então percebi que passara a noite a observar-me) ele próprio me daria um empurrão. Citou-me o caso de um famoso médium inglês, Daniel Douglas Home, que nos anos trinta desafiava a tradicional fleuma britânica fazendo flutuar pianos e outros objectos pesados. Conta-se que uma noite levou um boi para o salão de um rico industrial, e o ergueu no ar. Ia o boi ao nível dos lustres, bem alto e iluminado, quando, por distracção ou um repentino desfalecimento de fé, lhe falharam as forças (ao médium), romperam-se os fluidos ectoplasmáticos, e o animal precipitou-se, com brutal fragor, sobre duas das acólitas.

— Morreram?

— O que lhe parece? — Suspirou. — A história da aeronáutica está cheia de tragédias, pequenas e grandes, mas nem por isso deixamos de andar de avião.

Declinei o convite. A festa chegara ao fim. Um velho negro dançava sozinho, de lágrimas nos olhos, alheio à música, vamos chamar-lhe música, uma mistura de alarme de carros, já rouco e exausto, e metais em convulsão. Duas raparigas muito loiras, muito lânguidas, dormiam abraçadas num sofá. Eu não conhecia ninguém. Ninguém me conhecia.

—Talvez você saiba de alguém que dê aulas de invisibilidade. Nisso estou interessado.

Emanuel Subtil olhou-me com desdém. Não respondeu. Já no hall, enquanto escolhia um guarda-chuva discreto, conforme ao meu ofício, entre um denso molhe deles, ainda vi o brasileiro abrir caminho através do fumo espesso e desabar no sofá, junto às duas raparigas loiras. Vi-o fechar os olhos. Cruzar os braços sobre o peito magro. Pareceu-me que sorria. Tenho conhecido gente um pouco estranha nestas festas. Existe de tudo. As ocupações mais bizarras. Eu sei, é claro, que isso depende sempre da perspectiva. Eu, por exemplo, vendo caixões. O meu pai vendia caixões. O meu avô vendia caixões. Cresci nisto. Acho até prosaico. Preferia, reconheço, dar aulas de levitação. Paciência. Consola-me saber que a morte é melhor negócio. Como o meu avô dizia - só uma coisa me aflige: a imortalidade.