terça-feira, 5 de abril de 2011

Um Apólogo, Machado de Assis




Um Apólogo

Machado de Assis


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:

— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?

— Deixe-me, senhora.

— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.

— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.

— Mas você é orgulhosa.

— Decerto que sou.

— Mas por quê?

— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?

— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?

— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...

— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...

— Também os batedores vão adiante do imperador.

— Você é imperador?

— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:

— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...

A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:

— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.

Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:

— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!


Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1885


Música de Lenine

segunda-feira, 4 de abril de 2011

É hora de julgar os crimes econômicos contra a humanidade?

Da mesma forma que se criaram instituições e procedimentos para julgar os crimes políticos contra a humanidade, é hora de fazer o mesmo com os crimes econômicos. Este é um bom momento, dada sua existência difícil de refutar. É urgente que a noção de “crime econômico” se incorpore ao discurso cidadão e se entenda sua importância para construir a democracia econômica e política. No mínimo, isso nos fará ver a necessidade de regular os mercados para que, como diz Polanyi, eles estejam a serviço da sociedade e não o contrário. O artigo é de Lourdes Benería e Carmen Sarasúa.

Lourdes Benería e Carmen Sarasúa – El País





Segundo a Corte Penal Internacional, crime contra a humanidade é “qualquer ato desumano que cause graves sofrimentos ou atente contra a saúde mental ou física de quem o sofre, cometido como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil”. Desde a Segunda Guerra Mundial estamos familiarizados com este conceito e com a ideia de que, não importa qual tenha sido sua magnitude, é possível e necessário investigar estes crimes e punir os culpados.

Situações como a gerada pela crise econômica tem feito com que se comece a falar de crimes econômicos contra a humanidade. O conceito não é novo. Já nos anos 1950, o economista neoclássico e prêmio Nobel, Gary Becker, introduziu sua “teoria do crime” em nível microeconômico. A probabilidade de que indivíduo cometa um crime depende, para Becker, do risco que assume, do possível botim e do possível castigo. Em nível macroeconômico, o conceito foi usado nos debates sobre as políticas de ajuste estrutural promovidas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial durante os anos oitenta e noventa, que acarretaram gravíssimos custos sociais à população da África, América Latina, Ásia (durante a crise asiática de 1997-1998) e Europa do leste. Muitos analistas apontaram esses organismos como responsáveis especialmente o FMI, que perdeu muito prestígio após a crise asiática.

Hoje são os países ocidentais que sofrem os custos sociais da crise financeira e de emprego, e dos planos de austeridade que supostamente lutam contra ela. A perda de direitos fundamentais, como o trabalho e a habitação e o sofrimento de milhões de famílias que veem em perigo sua sobrevivência são exemplos dos custos aterradores desta crise. Os lares que vivem na pobreza estão crescendo sem parar. Mas quem são os responsáveis? Os mercados, lemos e ouvimos todos os dias.

Em um artigo publicado na Businessweek, no dia 20 de março de 2009, intitulado “Wall Street’s economic crimes against humanity”, Shoshana Zuboff, antiga professora da Harvard Business School, sustentava que o fato de os responsáveis pela crise negarem as consequências de suas ações demonstrava “a banalidade do mal” e o “narcisismo institucionalizado” em nossas sociedades. É uma mostra da falta de responsabilidade e da “distância emocional” com que acumularam somas milionárias e que agora negam qualquer relação com o dano provocado. Culpar só o sistema não era aceitável, argumentava Zuboff, assim como não seria culpar, pelos crimes nazistas, só as ideias e não aqueles que os cometeram.

Culpar os mercados é efetivamente ficar na superfície do problema, Há responsáveis e são pessoa e instituições concretas: são aqueles que defenderam a liberalização sem controle dos mercados financeiros; os executivos e empresas que se beneficiaram dos excessos do mercado durante o boom financeiro; aqueles que permitiram suas práticas que permitem agora com que saiam imunes e fortalecidos, com mais dinheiro público, em troca de nada. Empresas como Lehman Brothers ou Goldman Sachs, bancos que permitiram a proliferação de créditos podres, empresas de auditoria que supostamente garantiam as contas das empresas, e pessoas como Alan Greenspan, chefe do Federal Reserve norteamericano durante os governos de Bush e Clinton, opositor ferrenho da regulação dos mercados financeiros.

A Comissão do Congresso norteamericano encarregada de investigar as origens da crise foi esclarecedora neste sentido. Criada pelo presidente Obama, em 2009, para investigar as ações ilegais ou criminais da indústria financeira, entrevistou mais de 700 especialistas. Seu informe, tornado público em janeiro passado, conclui que a crise financeira poderia ter sido evitada. Assinala falhas nos sistemas de regulação e supervisão financeira do governo e das empresas, nas práticas contábeis e de auditorias, e na transparência nos negócios. A Comissão investigou o papel direto de alguns gigantes de Wall Street no desastre financeiro, por exemplo, no mercado de subprimes, e das agências encarregadas do ranking de bônus. É importante entender os distintos graus de responsabilidade de cada ator deste drama, mas não é admissível a sensação de impunidade sem responsáveis.

Quanto às vítimas dos crimes econômicos, na Espanha um desemprego de 20% há mais de dois anos significa um enorme custo econômico e humano. Milhares de famílias sofrem as consequências de terem acreditado que pagariam hipotecas com salários mileuristas (1): 90 mil execuções hipotecárias em 2009 e 180 mil em 2010. Nos EUA, a taxa de desemprego é metade da espanhola, mas envolve cerca de 26 milhões de pessoas sem trabalho, o que implica um tremendo aumento da pobreza em um dos países mais ricos do mundo. Segundo a Comissão sobre a Crise Financeira, mais de quatro milhões de famílias perderam suas casas, e quatro milhões e meio estão em processo de despejo. Cerca de 11 bilhões de dólares de “riqueza familiar” desapareceram com a desvalorização se patrimônios, incluindo casas, pensões e poupanças. Outra consequência da crise é seu efeito sobre os preços dos alimentos e outras matérias primas básicas, setores para os quais os especuladores estão desviando seus capitais. O resultado é a inflação de seus preços e o aumento ainda maior da pobreza.

Em alguns casos notórios de fraudes como o de Maddof, o autor está na prisão e o processo judicial contra ele continua porque suas vítimas têm poder econômico. Mas em geral aqueles que provocaram a crise não só obtiveram lucros fabulosos, como também não temem castigo algum. Ninguém investiga suas responsabilidades nem suas decisões. Os governos os protegem e o aparato judicial não os persegue.

Se tivéssemos noções claras de que se trata de um crime econômico e se existissem mecanismos para investigá-los e persegui-los muitos dos problemas atuais poderiam ter sido evitados. Não é uma utopia. A Islândia oferece um exemplo muito interessante. Em vez de resgatar os banqueiros que arruinaram o país em 2008, a promotoria abriu uma investigação penal contra os responsáveis. Em 2009, o governo inteiro teve que renunciar e o pagamento da dívida foi suspenso. A Islândia não socializou as perdas como estão fazendo muitos países, incluindo a Espanha, mas decidiu aceitar que os responsáveis fossem castigados e que seus bancos quebrassem.

Da mesma forma que se criaram instituições e procedimentos para julgar os crimes políticos contra a humanidade, é hora de fazer o mesmo com os crimes econômicos. Este é um bom momento, dada sua existência difícil de refutar. É urgente que a noção de “crime econômico” se incorpore ao discurso cidadão e se entenda sua importância para construir a democracia econômica e política. No mínimo, isso nos fará ver a necessidade de regular os mercados para que, como diz Polanyi, eles estejam a serviço da sociedade e não o contrário.

NOTA
(1) O neologismo “mileurista” (surgido a partir de “mil euros”) se aplica para definir a uma pessoa pertencente à geração nascida entre 1965 e 1985, na Espanha, que possuem uma renda que não supera a casa de 1.000 euros/mês.

(*) Lourdes Benería é professor de Economia na Universidade de Cornell. Carmen Sarasúa é professora de História Econômica na Universidade Autônoma de Barcelona. Artigo publicado originalmente no jornal El País, no dia 29 de março de 2011.

Tradução: Katarina Peixoto

domingo, 3 de abril de 2011

Homenagem ao passado de orgulho




Tatiana Furtado,para O Globo.


Ao entrarem no campo
de São Januário,
hoje, às 16h, Vasco
e Bangu farão o
180º
confronto
entre
os dois clubes.
Mas por trás de
mais um jogo de futebol,
o de hoje se
reveste de simbolismo e história
de pioneirismo de ambos
contra o racismo no esporte.
De um lado, o time da casa estreia
o terceiro uniforme, em
homenagem aos Camisas Negras
dos anos 20, que conquistaram
o primeiro título carioca
de um clube que tinha em seu
elenco negros e mulatos. Do
outro, está justamente o primeiro
do Rio a escalar um negro,
o meia Francisco Carregal,
entre seus titulares antes mesmo
da criação oficial do Estadual,
em 1905.
— São dois clubes com
grandes histórias na questão
racial. O Bangu foi o primeiro a
aceitar jogadores negros, o
Francisco Carregal, o Manuel
Maia, o Luís Antônio da Guia,
irmão do Domingos da Guia.
Entre os grandes do Rio, o Vasco
tem uma história diferente
porque promoveu a inclusão
social na década de 20 — afirmou
o diretor de patrimônio
do Vasco, João Ernesto da
Costa Ferreira, desfazendo
qualquer briga com o Bangu
pelo pioneirismo no caso.
Com os dizeres “Respeito e
Igualdade” no peito, a camisa,
toda preta e sem faixa diagonal,
rememora uma época do
clube fundado por portugueses
que abriu as portas aos negros
e pobres. Num esporte
até então amador e elitista, a
ascensão do Vasco no Carioca,
saído da Segunda Divisão em
1922 e campeão em 1923, incomodou
os dirigentes dos outros
clubes e começou a despertar
a paixão no povo:
— O Vasco foi campeão de
forma avassaladora, só perdeu
um jogo. No ano seguinte, os
grandes do Rio criaram outra
liga no lugar da liga existente.
Convidaram o Vasco, mas uma
das condições era que afastasse
do seu plantel 12 jogadores
de ocupações duvidosas, consideradas
inferiores, na maioria
negros e mulatos. O então
presidente José Augusto Prestes
não aceitou e enviou uma
carta recusando o convite. A
carta é um verdadeiro libelo
contra a discriminação racial e
social. É um troféu, tanto que
está exposta na sala de troféus
— disse Oliveira, lembrando
que o Vasco foi campeão em
1924 por outra liga.
Foi algo que já havia acontecido
com o Bangu alguns anos
antes. O clube, que aceitou os
operários Francisco Carregal,
em 1905, e Manuel Maia, em
1906, os primeiros negros de
que se têm registro no futebol
carioca, também recebeu o pedido
da liga para retirá-los do
elenco. Pedido negado, que
afastou o time do Carioca de
1907 e 1908.
— Na verdade, não sabia de
todo este passado do Bangu.
Sempre soube das dificuldades
dos negros, como a história
do jogador do Fluminense,
que teve que passar pó de arroz
para ficar branco e jogar.
No Bangu, sempre houve muito
respeito. Também me sinto
homenageado com essa iniciativa
do Vasco — disse o técnico
do Bangu, Marcão, que começou
e encerrou a carreira
no clube.
No jogo do respeito, a única
disputa vai ser na bola pela vaga
nas semifinais da Taça Rio,
que ambos tentam alcançar. O
lugar na história já lhes pertencem.



Bangu apoiou represálias contra o Vasco em 1923.

Do Lancenet

O duelo Vasco e Bangu, tem uma importância histórica para o futebol nacional que a equipe de São Januário irá resgatar com uma justa homenagem. O time cruz-maltino entrará em campo com o novo terceiro uniforme, todo preto, em alusão à equipe de 1923, primeira a se sagrar campeã carioca com negros em seu elenco. No entanto, o primeiro clube no Rio a aceitar afro-descendentes em seu plantel foi o alvirrubro da Zona Oeste.

Os pioneirismo de Vasco e Bangu permitiu com que, por exemplo, os ícones das duas equipes sejam hoje dois negros, como o zagueiro Dedé e Marcão, hoje técnico banguense.

- É motivo de orgulho ter sido revelado pelo clube que abriu as portas para os negros - disse Marcão, que começou no alvirrubro.

No início do século, futebol era considerado um esporte de elite. Por isso, os jogadores de futebol da época eram membros e descendentes da alta hierarquia carioca. Mas, em 14 de maio de 1905, em um amistoso contra o Fluminense, o Bangu colocou em campo um time formado por estrangeiros da Itália, Inglaterra e Portugal. O único brasileiro era Francisco Carregal, filho de um português e uma brasileira negra. Este foi o primeiro registro de um jogador negro em uma partida de futebol no Rio.

De acordo com relatos da época, Francisco era muito vaidoso e procurava se vestir de maneira impecável, justamente para minimizar o preconceito racial, que era grande no meio futebolístico. O pioneirismo do Bangu abriu as portas para outros negros nos gramados. No entanto, eles ainda eram minoria e defendiam clubes menores.

As equipes com afro-descendentes não ameaçavam a hegemonia dos principais clubes da época (Flamengo, Fluminense e Botafogo). Isso só foi acontecer em 1923, quando um time recém-promovido da Segunda Divisão fez uma campanha impecável no Carioca. Com camisas negras e maioria dos atletas de origem mestiça, o Vasco foi o primeiro campeão que acabou com a então superioridade branca no futebol.

Indignados com a vitória dos vascaínos, Fla, Flu, Bota e América tentaram eliminar os negros do futebol, alegando que estes, por serem humildes, se sustentavam do esporte e seriam profissionais. Com medo de represálias, o Bangu se adequou à determinação. Já o Vasco lutou por seus atletas e não aceitou expulsar os afro-descendentes do elenco. Com isso, ficou fora do Carioca de 1924.

O ato cruz-maltino foi reconhecido em 1925. Vendo que o Vasco ganhou grande popularidade por conta de sua luta contra o preconceito, os grandes acabaram com a determinação de excluir os negros e a equipe vascaína foi reintegrada ao Carioca.