quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Nostalgias... (Trecho de carta) Hugo de Carvalho Ramos

Hugo de Carvalho Ramos nasceu em 21 de maio de 1895, em Vila Boa, então Capital do Estado de Goiás. Iniciou seus estudos na cidade natal e depois foi para o Rio de Janeiro, onde, em 1916, matriculou-se na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1917, publicou Tropas e Boiadas,coletânea de contos que até hoje permanece como uma das obras goianas mais festejadas. Em 1920, estando prestes a concluir seu curso jurídico e, em crise de depressão, viaja ao interior de Minas Gerais e São Paulo. Em 31 de março de 1921, quando retorna ao Rio de Janeiro, suicidou-se, enforcando-se com uma corda de rede. Sempre presente na história da literatura pelo seu livro de contos, deixou poesias que mereceram inclusão no livro de Andrade Muricy sobre o Simbolismo.

Biografia: Tropas e boiadas (contos). Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1917; Obras completas de Hugo de Carvalho Ramos, São Paulo, Panorama, 1950, 2 v.

Já que vais brevemente à chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num
tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o manténs),
próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por mim a última vez que lá estive. Olha, não te
esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e
garranchento; e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a
comprida cana de pesca sobraçada, farnel d'iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto
e em mangas de camisa quase sempre – tal o nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito anos, – a
cantar velhas trovas nativas pelas estradas...
Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos
de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão.
Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só,
quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e
barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso
de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra
banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao
sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de
roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos
pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d'argila vermelha, entranhando-se do outro
lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem
habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os
cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor...
Apressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre
Chegadinho, dos batuques e muxirões da roça, ora aquela dolente melopéia do Baleador, tão
simples e evocadora:
Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira,
A porteira não quebrou!...
Assim alegremente, fazia os dois quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam,
no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.
No Manuel Flor, tapera antiga que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de
que restavam apenas os moirões d'aroeira, carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos
gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo
trilho inculto que levava à pedreira favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas
taquaras apodrentadas adensavam os mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol,
impunha silêncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da
pescaria...
Voltávamos ao sítio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro,
quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada,
mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando às vezes o dedo dolorido duma ferroada de
jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa
cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lobós que lhe seriam como
prêmio adjudicados.
De longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os
primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e assustados dum trambolhão a um
pinote ou volteio mais rápido.

Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde.
Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas dos
jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes.
Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos
moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pêlo
arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho.
Distante, na estrada da Barra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga
de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a
estalar ao longe, e a voz pigarrosa do caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a
incitar aos muxoxos a mulada:
– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!... Penacho!...
E mais além, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se,
moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas e estrídulas as outras, de lado a lado
rememorando a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...
Anoitecia. A paz do sertão, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa
tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacenta d'algodão, alumiada ao centro,
vagamente, pela candeia de três bicos, que se espevitava de vez em vez.
Surgiam o angu de caruru nos tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto,
em travessas e pratos estanhados, rebrilhando à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão
de caninha e o frasco de malagueta para os mais velhos, os que gostassem do condimento
rústico.
Empanturravam-se como pagãos que éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas
colônias...
Que rica bóia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao
tempo que se contava ainda na fieira dos anos onze, doze, treze primaveras apenas!
Não raro, o caseiro do sítio, forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o
braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três léguas derredor – vinha para a soleira da porta,
encapotava-se banzento ao batente, acendia um cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como
capucho d'algodoeiro, punha-se a devanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e
pequenos.
Eram sempre histórias antigas, das passadas eras do Império e presídios do Araguaia.
Ficávamos a escutar, sonhando com essa região longínqua de canguçus e caboclos desnudos,
areias infindáveis alvejando à distância, onde a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do
luar, e de cujo fundo das águas saíam, em estação propícia, as tracajás à desova pelas praias
d'arribação...
E a mente exaltava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e
outros que, mais felizes, tinham visto ou descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a
selvática poesia dos sertões brasílios...
– Ah! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular
do capitão José Manuel, teu pai, nosso tio-avô!
Vinham logo narrações da vida à beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e
matanças dos índios canoeiros, caiapós e xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele,
ajoelhado à soleira do rancho, a velha espingarda reiúna e respectiva munição ao lado,
mordendo impassível o cartucho, fizera frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros,
fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo à guarnição de tocar a rebate e acudir em
defesa às muralhas.
– Era pelo meio da noite, um luar tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto,
uma larga faixa branca pintada na testa. Isso servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho
ficara que nem porco-espim: crivado d'alto a baixo de frechas e tantas que, ao outro dia,
andando os soldados a apanhá-las nos arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram
para manter o fogo da cozinha semanas a fio. De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito.
– Tempos brabos – comentava.

(Ai, meu pobre herói obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de
paz numa cova rasa do cemitério da Barra, junto ao filho do Anhangüera, o desbravador de
meus pagos!)
Relatava agora, entre sério e jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio,
afrontando do último recruta ao comandante; de como faltaram então todos os recursos e
mantimentos naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o paude-
fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas, grazinavam
saltitantes nas embaúbas.
– Pum! pum! Botava um, botava dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho
pilado, servia ao pé do leito aos patrões devorados de febre.
– Bicho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que
prestasse. Como ele, só papagaio, vote! Parecia até o capeta em figura de ave.
Depois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera
engraçado com a mulher. O camarada riscara a parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe
resposta bem segura, entre costelas, no bucho...
E explicava: O anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa
Leopoldina – onde ele acabara de abater uma rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu
capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo decidido a armar sarseiro, cara amarrada,
berrando alto, gesticulando atrevido, arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de
cachaça nos bofes.
Ele ouviu, ouviu, como quem não entendia; mas num repente, ante um desaforo mais
grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o
famanaz pelos peitos, atirando-o com violência ao meio da rua.
O Domingos foi de roldão bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à
mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também
do lado de fora, a comprida faca do corte – reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o
passar. De novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando
aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra
veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.
– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue
do Minguinhos salpicando-o d'alto a baixo, todo fumegante, como brasa!
Animado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa
tarde mui límpida e calorenta d'agosto, um velho carajá que topara acocorado no alto duma
árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo, duma feita, quando vinha do campeio...
E anotava:
– Qual! Carajás... nação fraca...
– Mas mataste-o à toa, Casimiro?
– Ora, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a
vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori...
(cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...”
E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu atravessara o meu pampa campeador no meio do
caminho, a coronha da lazarina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras
e guarda-peito de mateiro, o chapelão para trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em
pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao sair do cerrado, onde andava a campear umas
reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado
rastros frescos num brejal, entre touças de caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas,
não topando vivalma. Daí a presunção em que vinha: pintada não fora, senão deixava algum
sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer cousa; e só muito faminta atacava cria taluda...
Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele estorvo.
– Desce do pau, ó tapuio!...
– Aí tori... aí tori... mata ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!...

– Ora, ora, o perereca batia a queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra
viver!... – quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe
nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo, vote!
Aqui interrompia a segunda mulher do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera –
toda lastimosa, um travo de zanga na voz:
– Pois tu não tens vergonha de contar cousas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!
– Mulher, mulher, mete-te com tua vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze
nas costas, mal contado; e não me arrependo, mais não fora, tanta gente ruim anda pelo
mundo!...
– E remorsos, nunca os teve? – indago.
O velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não
compreendera. Depois riu, a boca murcha espichando num bocejo cínico, onde sobressaía
desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem
contemplações e sem piedade para com os mais fracos, os vencidos...
– Leréia...
Sim, lérias, discutia eu no meu íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas
do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava, o busto ainda alto e espigado, onde os três
sangues da raça se caldeavam apaziguados, nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim
desde rapazote, à gandaia da natureza, a grande mestra da vida.
Quando fora da estopada do Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não
tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem dizer bicho do mato!...
Ora, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria
macabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas
enxurradas e animais bravios...
Terras bárbaras, gente forte!

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– Ai, a nostalgia do sertão!...
Pela manhã a Merência, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de
vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tostão o guampo. Também,
crivávamos-lhe de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava,
rezingando, a costa acorcovada.
Amigo: não val descrever a vida que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos.
Longe, numa terra inóspita para os pequenos e humildes, nesta trapeira velha onde noite alta
zune a ventania e vem visitar-me alcatéias de ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas
pequenas manias de rabiscador anônimo, o espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se
ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à
espera dum futuro que não chega e sabendo quão amarga sói às vezes ser a solidão para os que
meditam e sonham e quão duro é viver distante das cousas que nos foram familiares, relembro a
paisagem adusta de nossa velha terra, e confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em
minhas faces escaldadas, como óbulo votivo ao torrão onde vi a luz, onde minha infância
decorreu como todas, ai, tão depressa, tão descuidosa...
Mas basta de sentimentalismo!
Revê-la-ei? Não sei. Talvez nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver
cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos e contrários embates de
interesses e paixões mesquinhas, sinto que o meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora,
insensível e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o cinge e
aperta num supremo e frenético esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em
meio a sua tristeza, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens mais
amigas, filhas do meu Sonho e da minha Saudade...
Vale.
Rio... 1915