sexta-feira, 9 de julho de 2010

Gonzaguinha

22/9/1945 29/4/1991

Quem viveu a década de 1980 e curtiu os sucessos de Gonzaguinha sempre tem na lembrança a alegria dos sambas-exaltação-à-vida "O que é, o que é" e "É", ou da animação pop de "Lindo lago do amor", ou ainda do lirismo conjugal de "Explode coração", "Grito de alerta" e "Ponto de interrogação". A primeira dedução é que seus primeiros discos tiveram esses três atributos. Certo? Errado. No início de sua carreira, bem no começo da década de 1970, ele em nada lembrava o magro barbado e simpático capaz de arrastar um público para a festança de músicas como "E vamos à luta". Muito pelo contrário: canções de teor áspero somados à ausência de beleza física lhe valeram de um jornalista paulista a designação jocosa de "cantor-rancor". Tanto que Gonzaguinha sequer se apresentava com o apelido no diminutivo, e sim com o nome de batismo, que deu nome ao primeiro disco, lançado em 1973 pela gravadora Odeon.

Até então, Luiz Gonzaga Júnior era razoavelmente conhecido do grande público, primeiro por causa do nome herdado do pai, o eterno Rei do Baião. O detalhe desse ponto é que os dois ainda tinham um relacionamento conturbado. Segundo, Gonzaguinha, integrante do Movimento Artístico Universitário (MAU), já tinha faturado um dos famosos festivais de MPB na televisão (em 1969 na TV Tupi, com a apocalípitica "O trem") e participava com frequência do programa "Som Livre Exportação", na Rede Globo, com seus colegas Ivan Lins, a então mulher deste, Lucinha, e Aldir Blanc (que tocava atabaque antes de ficar famoso como o letrista parceiro de João Bosco), mas ainda faltava a guinada principal.

Ele mantinha a postura anti-sucesso-fácil, o que não era de agrado por parte da gravadora. Seus discos compactos, estágio inicial da época para o lançamento de um trabalho completo, vendiam pouco. O último, extraído de "Luiz Gonzaga Jr.", era um caso pior: estava encalhado nas lojas. Foi então que a surpresa aconteceu. Chamado para se apresentar no programa de Flávio Cavalcanti (um Faustão da época, só que mais rabugento e elitizado), Gonzaguinha deixou os jurados horrorizados com o samba-protesto "Comportamento geral". Depois disso, a música começou a tocar nas rádios, dando visibilidade ao seu trabalho e fazendo com que os compactos desaparecessem das prateleiras, tamanhas foram as vendas por conta da repercussão. Mas durou pouco: a censura do regime militar proibiu a música e "convidou" o autor a explicar que história era aquela de "Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que está desempregado", conforme diz um trecho da letra.

"Comportamento geral" ("Você merece, você merece / Tudo vai bem, tudo legal / Cerveja, samba e amanhã, seu Zé / Se acabarem com seu carnaval?") ficou sendo a música mais conhecida do primeiro disco de Gonzaguinha. Das dez faixas, a única que demonstrava bom-humor era "A felicidade bate a sua porta", um hino fictício de programa radiofônico de auditório, que também obteve sucesso popular ao ser gravada mais tarde pelas inesquecíveis Frenéticas ("O trem da alegria promete, mete, mete, mete, garante / Que o riso será mais barato dora, dora, dora em diante"). O resto era marcado por um clima sombrio, começando pela capa: a foto de um boneco representando o compositor, com um rombo marcando-lhe a testa, como se tivesse levado uma pedrada. Uma imagem associada à canção "Moleque", um misto de desafio à ordem vigente com memórias de infância ("No tiro, estilingue, bodoque / O teco, o toque, o coque... Moleque, vem cá, moleque / Não, eu não vou lá / Vem me pegar, quero ver"). Era a segunda gravação seguida, pois ele já a havia registrado para a disputa do Festival de MPB da TV Record, em 1969, com um andamento musical mais acelerado.

No mais, os arranjos e letras tinham um quê de lirismo kitsch e, por que não dizer, punk. A primeira faixa, "Sempre em teu coração", começava com um inocente convite para dançar que culminava num refrão de temor diante do desconhecido da vida ("Um passo pra lá / No compasso da valsa / Da vida, do tempo... Sorrindo, chorando / Nos braços da vida / Na valsa do tempo..."), convite para bailar que se repete na balada "Romântico do Caribe" ("A quanto tempo a gente não dança / Um bom bolero à meia-luz?"), faixa na qual um belo solo de baixo elétrico se destaca. Sobram dor-de-cotovelo no bolerão "Minha amada doidivana", humor negro sensacionalista em "Página 13" (como a descrição sugere, a história cantada de um chefe de família que comete suicídio após matar a mulher e os filhos, com direito à orquestração de big-band) e carnaval depressivo em "Sim, quero ver" (na qual torce para ver "dessa vez o pierrot derrotando o arlequim), continuação da marchinha "Pierrot apaixonado".

Outro destaque fica por conta da repetição obsessiva do curioso refrão de "Palavras" ("Cantar nunca foi só de alegria / Com tempo ruim / Todo mundo também dá bom dia"), seguido pelo choro do bandolim e pela marcação do tímpano, numa canção ambígua (pode ser entendida tanto como uma música de protesto político quanto um desafio amoroso) que já mereceu registros de Nana Caymmi e Maria Bethânia.

Por fim, a incerteza no futuro que marcava "Sempre em teu coração" se repetia em "Insônia", última faixa ("Esse lençol gelado / E esse sono que não vem..."). O "cantor-rancor" só se transformaria em "moleque" a partir de 1976, com o lançamento de "Começaria tudo outra vez". No resumo de tudo, um Gonzaguinha, ou melhor, um Luiz Gonzaga Júnior que em nada recorda o intérprete de "Viver / E não ter a vergonha de ser feliz...".