terça-feira, 25 de maio de 2010

E ele nem sabia que era Sábio

Reportagem, Marcelo Abreu.

E ele nem sabia que era sábio.
A história do homem que nunca aprendeu a ler e a escrever, mas, ainda assim, lutou, há quase meio século, para que uma escola chegasse àquele fim de mundo onde vivia com a família. Salvou a vida de toda a comunidade e, sem imaginar, levou luz à escuridão.

Bom cavaleiro a vida toda, Santil Ribeiro cavalga pela redondeza. A atividade o mantém cheio de disposição, no auge dos seus 87 anos: disposição juvenil e pose de lorde.
O dono desta história nunca lerá uma linha do que será escrito sobre ele nesta página. Não entenderá esse tanto de ponto e vírgula. Não juntará nenhuma palavra. E não o fará em decorrência de nenhum problema visual. A visão dele é perfeita. Perfeitíssima até, para os anos que carrega. Este homem não lerá porque a ele nunca as letras foram apresentadas. Muito provavelmente, um dos nove filhos, ou um dos 23 netos ou até mesmo um dos seis bisnetos se encarregarão de fazê-lo. E ele escutará o que tanto se falou dele.
Este homem, a despeito do total desconhecimento das letras, salvou a vida da própria família. E a de todo o povo daquela comunidade a 70km de Brasília — tão perto e ao mesmo tempo tão distante da capital. Sem assinar o próprio nome, ele levou o saber a uma gente que, de tão humilde, era invisível. E ali, no meio daquele nada, uma escolinha chegou. A professora, que veio de muito longe, chegava montada num burro. E os alunos andavam léguas. E o homem que nunca aprendeu a ler achava que tinha realizado o maior dos feitos. Hoje, ele não apenas acha. A certeza está marejada nos olhos humildes. E assim esta história — que lembra um roteiro de um filme bom — começará a ser contada.
O dono dela é um ser de uma sabedoria única. Depois de conhecê-lo, a compreensão de vida, de determinação e de sonho se ampliam. Esta é a história de Santil Alves Ribeiro. A única, a melhor que juntou. E, mesmo que nunca tenha rascunhado uma só linha foi a mais fantástica que escreveu. Filho de pai e mãe mineiros, Santil nasceu pelejando. Da região de Unaí, os pais, agricultores pobres, migraram para terras goianas. A falta de trabalho e a fome os enxotava de tempos em tempos. Pararam num lugar chamado Saco Grande, um povoado da então pequena Formosa. Raiava o ano de 1923. Ali, o menino comprido berrou pela primeira vez ao sair da barriga da mãe miudinha. Era o mais velho. Depois dele, vieram mais quatro. E a vida seguia. De concreto, só a fé que a mãe católica carregava. Aos 15 anos, o pai do menino comprido morreu. A fome mais uma vez assustou a família. O adolescente virou homem grande da noite para o dia. Assumiu o sustento da mãe e dos irmãos. Trabalhou de sol a sol em todas as terras alheias daquela região. Cuidava da terra e criava porcos. “Minha vida virou trabalho. Fui ficando moço velho”, conta.
Um fazendeiro das terras onde ele trabalhava montou uma escola na região. Santil deu a vez aos irmãos. “Eu não podia estudar. Virei o pai da casa. Precisava trabalhar pra
sustentar todos eles.” Os irmãos de Santil aprenderam um bocadinho do alfabeto. Casaram-se. Ele, além de solteiro, nunca conheceu as letras que formavam seu nome. “Minha mãe um dia me disse que eu tinha que me casar. Se não, ia ficar velho e sozinho.” Nova vida Aos 31 anos, com as mãos calejadas da enxada, Santil se casou. Era seis de agosto de 1957. “Já era homem velho”, diz. Carmelita Guimarães, sua Lita, também não sabia as letras. Era filha de agricultores muito pobres. “Pedi emprestado pro meu patrão 600 mil réis pra comprar as coisinhas dela.” E ali, ele se casou. Não teve vestido de noiva nem festa. “Depois, trabalhei dobrado pra juntar um conto de réis e pagar a dívida.” Do Saco Grande, procurando melhores condições de vida, Santil e Lita se mudaram para Lavrinhas, ainda em terras goianas. Ali, nasceu parte dos nove filhos. Tempos depois, chegaram ao DF, na região do Capão Seco — que hoje, nessas divisões geográficas confusas, pertence ao Paranoá. E a família estava completa: Maria, Antônio, Santino, Pedro, Flávia, Dulita, Marcos, José e Ivonice. E foi ali no Capão Seco do anos 1960, em plena ditadura militar, que o homem que nunca copiou as letras começou a escrever sua melhor história. As crianças— dele e dos outros agricultores — cresciam. E não havia nenhuma escola por perto. O Exército ocupou a região. Fez sua base estratégica. Militares de outros cantos deste país continental chegaram. Vinham acompanhados de suas mulheres. A melhor casa, pelo menos a de alvenaria, era dos homens de verde. E só havia ela. O resto era barraco de tábua. Um dia, o comandante da missão que ocupava a região quis conhecer aquela gente. Mandou que Santil fosse àquela casa pintada de branco, no meio do cerradão. E lá se foi o homem, montado no seu burro. Depois de pouca conversa, o homem que não sabe ler lhe fez um pedido: “Seu comandante, aqui tem muita criança. Nenhuma sabe ler. Não dá pra montar uma escola por aqui?”. Surpreso, o homem de farda o encarou. Prometeu-lhe pensar no assunto. Renascimento Mas, dias depois, o comandante adoeceu e foi embora. Um outro, dessa vez um sargento, chegou pra ficar no lugar dele. “Moço, ele era brabo demais. Mas eu tive coragem e pedi a escola de novo. Disse assim pra ele: „Sargento, eu gosto de homem que fala na hora, gente que fala atrás da moita não me serve‟. O homem tomou fé em mim naquele momento.” Duas semanas depois, a escola, num quartinho da casa branca de alvenaria, foi inaugurada. O homem que nunca leu saiu de casa em casa, montado no seu burro, comunicando as boas-novas. E o povo se encheu de alegria. Os filhos daquela gente nunca mais ficariam sem estudar. A professora? “Era a mulher do sargento, veio lá do Rio de Janeiro”, ele conta. Primeiro, foram os três filhos maiores de Santil. “A Lita brigou demais, sô. Me dizia: „Como é que esses meninos vão estudar, se nem roupa têm‟. Eu respondia: „Faz mal, não. Veste a bermuda de algodão neles e pronto. A chinela eles dividem. O que for estudar de manhã empresta pro que for à tarde.” E assim se fez. E assim a vida seguiu.
Um dia, a escola ficou pequena demais para tanto menino. O Exército mudou para outro lugar, no Capão Seco, a 3km dali. Mais uma vez Santil juntou o povo e, juntos, construíram uma de tábua. E foi o homem que nunca soletrou o próprio nome que ensinou a professora carioca a montar no burro pra chegar ao Capão Seco. “Nossa senhora, a mulher pelejou demais pra montar, mas conseguiu...” Tempos depois, a professora foi embora. O marido foi transferido. E lá se foi o sargento. Em 1969, a Fundação Educacional assumiu a escola da zona rural. Virou Escola Classe Capão Seco — onde estudam os netos do homem que começou toda essa história. Quase meio século depois, Santil conta o começo de tudo com simplicidade comovente: “Uai, moço, o que não começa não pode ter fim. Eu acreditei, lutei pra que meus filhos não ficassem como eu, colocando o dedão em tudo que é papel.” Rezador de ladainha Na tarde da última quinta-feira, a convite do Correio, Santil, aos 87 anos, de calça jeans, camisa manga comprida, bota e chapéu de couro, voltou à escola que nasceu do seu sonho — mesmo que isso não conste de nenhuma biografia oficial. Naquele lugar simples, mas conduzido com amor pelas professoras e pela direção, as crianças o receberam como herói. aplaudiram-no. E ele se sentou, pela primeira vez, numa sala de aula. Nesse momento, a voz do homem humilde que anda como lorde engasgou. E os olhos umedeceram. “Uai, não mereço isso tudo, não.” Longe da escola, na sua terrinha de 11 hectares, ele fala do futuro. “Ah, sô, os anos já são muitos. Dizem que quem muito andou tá perto de chegar. Enquanto não chego, acordo com o cantar do galo. Aí, trato dos meus porquinhos no chiqueiro, tiro leite da vaca toda manhã, vejo meus boizinhos, como minha galinha criada no galinheiro (detalhe: toda a comida da casa é feita com banha do porco) e fumo meu fuminho enrolado na palha do milho.” Viúvo e saudoso de sua Lita há uma década, ela também, à moda dela, ajudou o marido a sonhar com as letras. “Não era justo deixar esse povo analfabeto”, ele justifica. Planos? “Agora em julho, vou dar pouso pro povo da Festa do Divino Espírito Santo”, responde o convicto devoto e rezador de ladainha. Emocionado, Marcos Guimarães Ribeiro, policial militar de 38 anos, um dos filhos do velho Santil, resume o pai: “Ele é o nosso exemplo de pureza, honestidade e humildade. Nosso herói”. Esse homem, simplesinho desse tanto, fez uma revolução num lugar improvável de que alguma coisa acontecesse. Trouxe a luz, quando ali só existia escuridão. E essa luz entrou pela retina, iluminou mentes, transformou almas e fez uma gente acreditar em sonhos. “Eu nunca pude ficar um minuto sentadinho num banco de escola”, diz, como lamento. Não foi preciso, Santil. A vida o tornou nobre e sábio. De uma sabedoria tão comovente que, talvez, nenhum banco de escola fosse capaz de lhe ensinar.

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